Porque eu retirei minhas próteses de silicone (parte I)
Mas antes é preciso entender porque eu as coloquei, em primeiro lugar.
Senta que lá vem história.
Finalmente senti que chegou o momento de falar sobre todo o processo do explante das próteses de silicone que eu possuía.
Engraçado que eu já ia escrevendo “minhas” próteses, e ainda é meio estranho não as chamar assim, ainda que elas já não estejam mais dentro do meu corpo; isso diz muito sobre como tudo se mistura em nós, tipo quando a gente sonha com coisas antigas como se ainda estivessem acontecendo.
Como vivi essa experiência, de certa forma elas ainda são “minhas”. E elas ainda estão guardadas, fora de mim. Não sei por quanto tempo, talvez em algum momento eu dê outro lugar para elas que não numa caixa no meu armário. Mas nunca irei descartar essa história.
Chegou a hora, então, de conta-la. Relembro que esse é um relato sobre minha experiência, e não uma recomendação ou conselho pra ninguém.

Um processo tem muitas fases.
Normalmente eu sou do tipo de pessoa que gosta de compartilhar sobre os processos enquanto eles estão acontecendo. Isso me ajuda a elaborar.
Mas dessa vez, eu simplesmente não quis. Ou não consegui.
E não que eu estivesse lutando contra ou evitando... Eu só não senti que era a hora. Tive a sensação de que antes eu provavelmente não conseguiria falar disso, ainda que tentasse.
Fui entendendo que era um processo muito pessoal e profundo, e que falar dele seria dispersar um tanto dessa energia que eu deveria concentrar em sentir.
Sentir, viver, observar. Deixar que aquilo sedimentasse. Que os sentidos se produzissem.
Algumas palavras só ficam prontas depois de longos silêncios.
Quanta coisa deixamos de viver em primeira pessoa porque já estamos tentando produzir algo sobre? O quanto essa época de espetacularização da vida na internet empobreceu nossas experiências?
Eu confiava que a hora chegaria, e que quando chegasse, eu saberia.
Enquanto isso, fui cuidadosamente notando cada detalhe desse processo, que, aliás, foi muito mais tranquilo do que eu imaginava. Tranquilo, mas profundo. Uma grande travessia.
O período “pré” foi muito mais difícil – elaborar tudo o que tinha significado colocar as próteses (lá aos 18 anos), para também vir a compreender tudo o que significava retira-las, e o que poderia implicar essa decisão de não as ter mais. Seria uma mudança gigantesca.
Muito mais do que uma cirurgia física, era também uma cirurgia psíquica.
Que bom que dessa vez pude contar com o espaço da minha análise para falar disso (longamente, durante muuuitos meses!). Para chorar tudo que estava ali, guardado. Pra dar sentido ao que eu ainda não entendia, e questionar os sentidos que já havia dado.
E eu digo “dessa vez” porque eu não tive esse espaço de reflexão e elaboração quando, aos 18 anos, coloquei as próteses. Isso teria feito uma grande diferença.
Foi só depois de muitos anos que fui entender que os motivos para as ter colocado eram muito mais complexos do que pareciam; dificilmente algo tão grande assim, como passar por uma cirurgia, é “só” por tal coisa (embora pareça comum, por ser naturalizado na nossa cultura).
Sempre há algo a mais, se investigarmos. E pra mim, não era “só” por estética (embora passasse por aí). Era também por isso, mas, principalmente: era porque eu sentia que “precisava” (sim! essa era a sensação) colocar peitos (!!!!!). É muito doido questionar certas coisas que sempre parecem óbvias, por já termos respostas e sentidos muito prontos (e rasos).
Uma “prótese” faz a função de suplantar/substituir algo que falta. E eu sentia que me faltava algo que me fizesse me sentir “mulher”.
Bom, estudando psicanálise muitos anos depois, fui compreender que “a” mulher não existe, no sentido de que não há um traço único que defina isso. Cada mulher terá de construir seu próprio sentido, a partir de uma falta. Mas temos a impressão de que uma mudança no corpo irá garantir isso. E o capitalismo se aproveitou desse buraco. Ele nos oferece objetos, a todo tempo, que supostamente preencherão essas insatisfações e essas faltas identitárias.
Mas, primeiro… o que veio antes.
Então, para falar sobre a retirada das próteses, eu preciso primeiro falar da colocação delas.
Eu tive as próteses por 10 anos (dos 18 aos 28). E só depois de uns bons anos é que, já em análise, eu pude compreender porque tinha feito essa “escolha” – um tanto inconsciente, mas ainda assim, uma escolha. E entender isso foi um processo. Um saber que foi sendo construído.
Muitas coisas a gente faz primeiro e só entende depois. O inconsciente também é isso.
Depois eu volto nesse ponto. O importante agora é contar algumas particularidades dessa época, quando decidi passar pela cirurgia. Como disse anteriormente, eu sentia uma certa necessidade de ter seios grandes. Claro que isso tem um tanto do discurso social da época (que, aliás, em todas as épocas sempre atingiu mais as mulheres) que instituía um padrão de beleza do corpo feminino que passava por ter seios assim (hoje, menos: os seios pequenos também passaram a ser valorizados).
2014 foi o “boom” das cirurgias para inserir próteses de silicone. Lembro que via mulheres com peitos “perfeitos” e já sabia identificar que eram próteses; passei a desejar aquilo. Parecia a solução perfeita pra minha sensação de falta. O “modelo” estava em todo lugar: nas revistas, na TV, na rua, no círculo de convivência; as influências também – antes de existirem os “influencers” das redes sociais, o discurso social já fazia esse papel.
Sem falar nos homens que eu escutava elogiarem esse tipo de corpo; e até mesmo um dos meus primeiros namorados mais sérios, que ativamente me estimulou a colocar quando eu disse que flertava com essa ideia. Ele disse, e eu o cito, que eu “ficaria muito mais gata com peitos maiores”. A m3rda estava feita.
Minha mãe sabia da minha insegurança; eu já falava há anos que esse era “meu sonho”.
Meu? Quanta coisa nos apropriamos dizendo como “nosso” quando “o desejo do homem é o desejo do Outro”, como diz bem Lacan. Desejamos a partir do que nos é oferecido pelo discurso social.
Ela me apoiou, mesmo com receio, e entendo que achou que estivesse fazendo algo bom por mim. Se propôs a pagar e me acompanhar em todo o processo – e foi um dinheiro sofrido, porque nunca tivemos muita grana.
Os meses que precederam a cirurgia foram de muita alegria. Eu planejava cada passo como quem planejava uma viagem. Era a “realização de um sonho”, afinal de contas. E eu fui feliz com essa realização por algum tempo. Brinco que foi um andaime que me permitiu construir uma autoestima, por outras vias diferentes além do corpo, e que pudesse se sustentar depois.

O trauma de não-saber, apesar do saber reunido
Na época, também entrei num grupo sobre o assunto no facebook e passava horas de quase todos os dias pesquisando obsessivamente todos os detalhes sobre esse universo (sou assim com todo assunto que me interessa), e chegava a transmitir as coisas que aprendia pra algumas amigas que se interessavam por isso também (mais um traço meu). Hoje me arrependo de tê-las “influenciado” de alguma maneira. Mas reconheço isso não com culpa, mas a partir da maturidade que veio com os anos, pois como disse antes, algumas coisas só se sabe depois. Todos nós já incitamos alguém a fazer algo que nós mesmos vimos depois que não era assim tão uma boa...
Uma conhecida mais velha da época, que tinha próteses há vários anos (e cujo corpo também se tornou um “modelo” de mulher adulta e atraente pra mim, algo que nós psicanalistas entendemos muito bem sobre a tal tentativa de responder à pergunta “o que é ser mulher?”), me disse que o cirurgião com o qual ela havia operado fazia eventos sobre o assunto (!).
Na verdade, era uma grande reunião para te vender a ideia do procedimento, tipo Hinodê (desculpa o exemplo). Havia uma fachada de “palestra” para disseminar conhecimento, mas na verdade era uma apresentação de slides com motivos bem convincentes para fazer a cirurgia. Todos os argumentos giravam em torno da promessa de como aquilo resolveria as dores da sua autoestima e te faria feliz (o básico do marketing).
E, no fim, ele dava DESCONTO no valor da cirurgia pra todas que haviam comparecido ao “workshop” (era assim que ele chamava) e, pasmem – SORTEAVA um par de próteses (que, claro, também só eram válidas pra operar com ele). Como vocês podem imaginar, esse auditório estava lotado (mais de 100 pessoas), e esses “workshops” (estou com um pouco de náusea escrevendo essa palavra de novo) aconteciam praticamente todo mês. O cara estava surfando na grana.
No dia grande dia, eu estava apavorada. Apesar de ter ansiado por isso, eu estava com muito medo de passar por uma cirurgia (desde a infância eu torcia pra nunca “ter que” passar por isso, mas achei que por estar escolhendo seria mais fácil – não foi). No centro cirúrgico, eu estava sozinha, apesar de minha mãe estar na sala de espera (guardem essa parte). Me sedaram antes mesmo do médico chegar; ele estava atrasado. Depois soube que fazer isso é algo inapropriado; bom, coisas que a gente só sabe depois. Essa foi a outra m3rda.
E aí veio mais uma m3rda, a principal: durante a tão esperada cirurgia, ele simplesmente colocou outra marca de prótese dentro do meu corpo sem autorização. (!). Sim. Isso mesmo que você leu.
E depois eu descobri que ele já havia feito a mesma coisa com outras mulheres, dentre outras ações completamente antiéticas. Ele tinha vários processos por erros médicos e outros absurdos (inclusive, chegou a ser preso alguns anos depois, por cometer um outro tipo de crime não-médico). Era um cirurgião tecnicamente competente, mas sem escrúpulos. Sem ética.
E não, eu não pesquisei sobre o histórico judicial dele na época. Não se falava do “Jusbrasil” ou ferramentas assim. Foi uma indicação, eu pensei. Essa mesma mulher que me indicou tinha, sei lá, 10 amigas que tinham feito com ele, então era uma referência confiável, eu pensei. Os resultados eram realmente lindos, e não tinha dado merda com nenhuma delas, eu pensei. Os workshops aconteciam com muita frequência e estavam muito cheios, eu pensei. Havia uma fila de espera pra operar com ele, eu pensei.
Ou não pensei, simplesmente porque fui seguindo o fluxo e confiando no que foi aparecendo. Só pra te relembrar, eu tinha apenas 18 anos. Foi muito difícil não me julgar e não me culpar por “não ter sabido melhor” ao longo desses anos repassando toda essa história. E como já falei antes, e vou repetir: algumas coisas a gente só sabe depois. Com maturidade.
Espero que essa história te faça ter mais compaixão com as m3rdas e infortúnios que te aconteceram, independente de em qual medida você foi responsável por eles. Aprenda, claro. Escolha melhor. Mas entenda que há um limite do quanto podemos saber antes de ter mais experiência e maturidade. Especialmente aos 18 anos, numa época de romantização da cirurgia plástica (não que hoje seja muito diferente em relação a diversos tipos de procedimentos estéticos).
O trauma de não poder escolher
Bom, lembra que eu te pedi pra guardar a parte da história em que minha mãe estava me acompanhando no hospital? Então. Não pediram autorização pra ela em relação a essa mudança de marca das próteses. Essa troca supostamente foi “necessária” porque a marca que eu havia escolhido teve um problema de logística nas entregas, que deveria ter acontecido um dia antes, e as próteses não chegaram. Nesse caso, o procedimento ético deveria ter sido me avisar, e me dar a chance de escolher o que fazer. Me oferecer a possibilidade de colocar essa outra marca, com a qual eles tinham parceria (já explico melhor as implicações disso). Ou de reagendar a cirurgia.
De qualquer forma, independente do que eu escolhesse, eu precisava ter tido a POSSIBILIDADE DE ESCOLHER. E isso me foi retirado.
Depois, o canalha do médico deu a desculpa de que, “como eu já estava sedada”, e pra que eu “não perdesse a data da cirurgia” (eu ou ele?), ele escolheu fazer assim. ELE ESCOLHEU. POR MIM.
Não era sobre não ter quem consultar a respeito dessa decisão, pois minha mãe estava lá. Era sobre a má fé dele. Provavelmente pra não perder a hora dele, que custava caro, e ele operava em massa, lembram? Uma “esteira de produção” de cirurgia plástica. E, de toda forma, eles já sabiam desde o dia anterior que as próteses que eu comprei não haviam chegado. Má fé.
Mas, também, era sobre outro tipo de lucro: a porcentagem que ele ganhava pelas próteses dessa tal marca que ele conseguia “vender” pras clientes, pois eles tinham uma parceria. Lembram que eu disse sobre as próteses que ele sorteava nesses “workshops”? (não aguento escrever isso sem colocar entre aspas, pois workshops podem ser coisas muito sérias, o que não era o caso). Então.
Eu me senti completamente invadida. Enquanto eu estava inconsciente, alguém tomou uma decisão muito séria por mim, a de inserir algo dentro do meu corpo sem meu consentimento. Foi um abuso, e hoje eu entendo isso. Algo que já era difícil pra mim – passar por uma cirurgia, por ser algo invasivo – se tornou um grande trauma, pois eu fui invadida em um nível abusivo.
Entendo que todo esse processo doloroso de carregar as próteses dentro de mim partiu de todo esse contexto traumático de como elas foram colocadas. Se você já carregou uma dor psíquica, sabe como ela se manifesta no corpo. E como ela pode permanecer sendo carregada, mesmo que a parte “fisiológica” já tenha cicatrizado.
Carregar as próteses era carregar essa dor.
E passar por uma nova cirurgia para retira-las também foi uma cirurgia a nível psíquico, para remover algo dessas marcas.
Não-todas, porque a história ficou comigo. Mas hoje ganhou um outro lugar. Não só pela cirurgia em si, que foi quando culminou de forma concreta o processo de retirada, mas ao longo do meu processo de análise eu fui contando e recontando essa história, elaborando o que aconteceu, dando outros sentidos e me preparando para que essa despedida fosse possível. Das próteses, mas também de toda uma fase de vida. Uma década.
Na próxima edição…
Na próxima newsletter, eu vou contar um pouco mais sobre o dia em que decidi definitivamente retira-las (pois já há alguns anos vinha “me decidindo” e ensaiando isso); foi um dia incrível porque eu de fato conversei com meu corpo – não só a nível interno, mas literalmente, na frente do espelho. Ele vinha me pedindo pra ser escutado, e dessa vez gritou.
E também sobre toda a construção a partir das descobertas que fiz, falando em análise, que me permitiram ter coragem de dar esse salto. Grandes mudanças são possíveis a partir de uma construção, antes de tudo, a nível psíquico.
Irei contar, também, os detalhes de como foi passar por uma cirurgia de novo, sobre a recuperação, e tudo o que mudou e vem mudado desde então.
6 meses depois…
Escrevo esse texto em março de 2025, alguns dias após ter completado 6 meses desde a cirurgia, que aconteceu em setembro de 2024.
E parece que esses 6 meses foram uma outra vida – e não só parece, mas de fato considero que sim: eu morri e renasci na mesma vida, sem precisar esperar uma próxima encarnação pra viver diferente. Hoje vivo de outra forma, me reapropriei do meu corpo, e sigo construindo (!) uma outra relação com ele.
E sabe o que é estranho (no sentido de curioso)? É que às vezes parece que nunca nem tive essas próteses habitando meu corpo por 10 anos. Não parece que “só” se passaram 6 meses. Às vezes parece uma lembrança distante, como já tivessem 10 anos que elas foram retiradas. Às vezes parece um eco de uma história contada por outra pessoa. Ou mesmo uma outra vida.
E talvez seja porque eu me tornei mesmo outra pessoa. Não só pela cirurgia em si, entendem? Mas por todo o processo por trás dela.
Tive de me tornar outra, primeiro, para que viesse a conseguir retira-las. E já sou outra enquanto me refaço depois de tê-las removido. Sigo me tornando cada vez mais eu mesma, e descobrindo como é viver essa nova vida...
Hoje, meu corpo é meu de novo.

Escrever é uma forma de elaborar. E elaborar é uma forma de curar.
Tenho feito isso por mim, mas também senti que gostaria de compartilhar.
Quando somos escutados (ou lidos), algo também se elabora e se cura, para além de nós.
Então, obrigada. Como disse na primeira edição: boa companhia é essencial para atravessar.
Anna Medeiros
muito orgulho de ti por essa travessia!
Parabéns pela decisão. Gratidão por compartilhar.