Escrever (e escutar) é com o corpo e a alma toda.
E também com o inconsciente.
E por isso, escrever pode ser algo tão desafiador.
Escrever é fazer um recorte dentre tantas possibilidades para dizer alguma coisa, e assim deixar um tanto de fora.
É escolher.
Escrever é algo convoca todo o nosso ser, e nos convoca ao risco: o risco de não saber por onde começar, e também o de não saber onde vai dar. E entre esse início e fim, também não sabemos o que haverá.
Escrever envolve muito mais o não-saber do que o saber.
E isso tem tudo a ver com Psicanálise.
"Escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos". (Marguerite Duras)
É preciso se atrever a tentar escrever, pois é só escrevendo que descobrimos o que havia ali, em potencial. Atravessar o não-saber para vir a saber alguma coisa.
O texto que quero compartilhar com vocês, o “prato principal”, é um escrito meu de meses atrás: uma carta que foi publicada num livro psicanalítico, chamado “Cartas a uma jovem analista”, cuja versão impressa chegou nas últimas semanas.1
Um livro escrito por mulheres.

Apesar de já ter o texto “pronto”, não era só dropar ele aqui e tchau-beijo. Eu precisava escrever esse *um outro texto*, contextualizando alguns pontos sobre esse processo.
E daí... não consegui escrever. Travei.
O que a gente faz quando se enrosca? Espera, respira, espera mais um pouco, e tenta continuar.
Para escrever é necessário paciência.
“Escrever é mesmo uma tarefa impossível, e ainda assim, se escreve.” (Marguerite Duras)
(Freud também dizia sobre outras tarefas “impossíveis” e que ainda assim ousamos tentar fazê-las: educar, governar e psicanalisar. Perceba que ousar, tentar e se atrever são significantes importantes nesse texto).
Escrever não segue uma temporalidade linear, algo dito por tantos autores, o que nos faz pensar o quanto a escrita tem dramas partilhados coletivamente por todos aqueles que ousam escrever. Escreve-se na cabeça, algo se inscreve em nós, mas nem sempre vira texto. Ou, se vira, nem sempre se conclui naquele mesmo momento. Frequentemente deixamos aquele texto descansar, o chamado “tempo de gaveta”2; o “abandono” também é um método3, o que não significa que aquele texto não será retomado.
Se afastar da escrita também pode gerar outras possibilidades.
Essa edição foi bastante adiada, e embora tenha me cobrado um pouquinho (tão pouco quanto um agiota perseguidor) para não deixar o pratinho guardado por muito tempo, fiquei satisfeita ao perceber que consegui mais investigar mais sobre esse porquê de estar agarrada. Investigar – com curiosidade, sempre ela – e não só me fritar para fazer.
Eu estive num longo processo de internalização – eufemismo para o que realmente foi: uma hibernação profunda, um grande stand-by energético, onde eu fiz o melhor que pude podendo muito pouco. E isso também é desafiador (tanto quanto escrever) ainda mais vivendo no século XXI, em uma sociedade capitalista neoliberal onde reina o imperativo do “produza!”.
Também fiquei satisfeita em perceber que, apesar da cobrança que por vezes me telefonava (feito um agiota perseguidor), eu também consegui impor um domínio sobre essas vozes. Pude respeitar esse processo e ter paciência com ele (e comigo mesma, por consequência), pois precisava mesmo direcionar toda a libido que tinha (e que já não era muita) para essa regeneração que estava acontecendo nos lugares mais profundos e abissais da minha alma, do meu corpo e do meu inconsciente.
Hoje, minha própria voz fala mais alto que a do meu superego agiota que cobra, cobra, cobra.
A cada mergulho, um pouco mais de entrega, de disponibilidade, de compreensão comigo mesma.
Aprendendo a respeitar cada ciclo e a tarefa que ele me propõe, incluindo aí a de silenciar.
Como comentei na edição sobre a retirada das minhas próteses de silicone, que também demorou para (ser possível de) ser escrita:
“Algumas palavras só nascem depois de longos silêncios.” (Adélia Prado)
Mais uma frase que não é minha, e sim uma citação, mas que tomei para mim e atribuí alguns sentidos próprios costurados à minha história.
Juliano Garcia Pessanha também escreve4 que ao ler alguns filósofos ele se sentiu adotado, e diante disso “roubou” algumas palavras deles – não no sentido de plágio, afinal, os créditos foram dados – mas no sentido de se apropriar de algo para si que diz de si. A identificação é isso, afinal de contas. Se reconhecer em alguma outra coisa externa a si.
A escrita de outras pessoas nos fornece retalhos (e atalhos), os quais vamos costurando à nossa colcha e passam a fazer parte de nós. É meio antropofágico5, se parar pra pensar.
A vida e o inconsciente são coisas misteriosas, nos pedem tempo, paciência e flexibilidade para dançar o ritmo de cada momento. Esse texto, que precede outro (já pronto), precisou de tempo para nascer. Parece que o texto tem vida própria e escolhe o momento de vir ao mundo (ou não). Então já que o parto começou, vamos até o fim.
Uma última contextualização importante antes de compartilhar.
O texto que vocês lerão a seguir, então, foi escrito para o livro “Cartas a uma jovem analista”, e minha participação se deveu ao meu desejo. Eu vi o projeto e me candidatei – ou melhor, declarei meu desejo em fazer parte. Quantas vezes ficamos tímidos, à margem, gozando da privação, sendo que o que mais queríamos era botar o corpo dentro?
Minha análise tem se dado muito em torno desse tema. Desejar, e declarar o desejo. Dizer o que quero, ocupar o lugar do dizer, tomar a palavra, mostrar e não mais esconder. Escrever também passa por aí. Me convidar para participar de algum projeto que me interesse passa por aí. Fazer amizades sempre passou por aí (me dei conta que minhas melhores amizades se deram assim, com um movimento de iniciativa da minha parte, me declarando interessada em uma aproximação).
Desejo que vocês possam encontrar essa dimensão desejante, e que se autorizem a dar voz aos movimentos que o desejo fizer. Essa coragem é um divisor de águas.
As melhores coisas que me aconteceram tiveram a ver com esse processo de me colocar.
Inclusive, o de me tornar psicanalista.

E esse texto foi escrito pensando (como diz o título), numa jovem analista que me lê, mas principalmente, a jovem analista que fui e continuo sendo. Ela foi minha interlocutora. E agora vocês serão, também. Obrigada por me lerem.
P.S.: ainda que você não seja psicanalista e nem psicólogo... esse texto atravessa essa fronteira.
Sinta-se bem-vindo nesse espaço sustentado por palavras com as quais é possível encontrar pontos de contato e de identificação, não importa quem você seja.

“A beleza da escuta está em escutar com o corpo todo”
Querida jovem analista,
Independentemente da idade cronológica que tenha, espero que sua lógica seja sempre jovem – enquanto a juventude significar, em alguma medida, abertura para o mundo. A escuta exige um tanto de abertura para que possa realmente acontecer... e se desenvolver. Algo jovem está sempre em desenvolvimento, nunca pronto ou formado. E uma curiosidade latente, que mobiliza movimentações em novas direções. Não podemos prescindir disso. É, aliás, com isso e a partir disso que vamos, e continuamos indo adiante em nosso percurso.
A psicanálise enquanto um percurso de formação é um caminho para, também, reformular sua forma de enxergar, compreender e narrar o mundo. Entende por que a curiosidade tem de ir conosco, e é por causa dela que podemos ir? A curiosidade possibilita a reformulação porque, aos poucos, vamos cultivando uma perspectiva sensível, nos apropriando do novo (e, na melhor das hipóteses, nos desapropriando de muitas das arestas que nos fixavam em demasia). É o encontro com um instrumento de compreensão – mas também de edição – do que aconteceu (porque continua acontecendo) e de tudo o que ainda acontecerá... e assim, pode haver um senso de continuidade entre tudo aquilo que parecia um acontecimento fragmentado. E nesse encadeamento pode haver uma criação, mesmo a partir do que já foi.
E é bonito quando uma jovem analista descobre que seu percurso e sua clínica são plataformas para compreender protótipos de mundos tão diferentes que beiram à infinitização. E, com isso, encontrar também um lugar para dignificar o que há de singular na própria história (e na de alguns outros). E isso fortalece.
A psicanálise me permitiu poder. Um poder não-todo, e nem por isso menos revolucionário; me permitiu entender o que posso, o que não posso e como poder aquilo que posso de maneira mais criativa. Não preciso ser uma pessoa diferente, mas posso ser Outra.
A satisfação do tal “poder” está em se locomover um pouco mais livremente dentro de um recorte... do setting, do percurso, mas também da vida. Uma liberdade que também é não-toda, parcial, como a satisfação – mas que nem por ser parcial é menos interessante. Eu diria pelo contrário: é mais interessante porque é possível. Encontrar um estilo de existir.
E é isso que a descoberta sobre o estilo de cada analista também possibilita: a afirmação dos traços que caracteriza justamente essa singularidade. A marca do único, que não é exatamente o original, quando se pensa que toda constituição tem o Outro como pedra angular... mas o único enquanto um lugar-no-mundo que permite alguma construção com aquilo que podemos inventar sobre nós.
A matriz originária em conjunto com aquilo que decidimos encenar. Uma clínica teatral. Dirigimos o tratamento, mas também atuamos com o analisante. Costuramos novos figurinos, reescrevemos o roteiro, abrimos espaço para a improvisação para-além-do-script. Recortamos os atos mais importantes quando lemos a peça. E na clínica descobre-se como ampliar e desdobrar mesmo dentro de um recorte.
Portanto, uma jovem analista pode se construir, a partir de sua clínica, mas para além da função de analista, como uma testemunha do mundo e das histórias. A escuta é uma bússola, um sentido a partir do qual construímos sentido, porque parte dela uma forma de se localizar no mundo. Aqui também nos possibilita um recorte, e recortes são importantes porque nos fornecem bordas. Sem bordas seríamos irreconhecíveis para nós mesmos (até para sermos “parte” de uma massa precisamos de uma delimitação do todo).
Encontrar um lugar onde as palavras fossem levadas a sério me permitiu escutar e testemunhar todo o resto com a mesma importância. E, assim, construir um outro lugar no mundo. Uma jovem analista vislumbra essa nova possibilidade emocionante e a aproveita: costurar as palavras como forma de tecer outra posição na vida. Só é possível oferecer isso a nossos analisantes porque antes encontramos essa oferta por nós mesmas. Uma plataforma para construir esse Outro lugar nos foi oferecida por um Outro, que também nos ofertou suas palavras e sua escuta.

As palavras, embora sem concretude, produzem ondas ao redor de tudo que entendemos como palpável. E quando nos damos conta disso, de que essa operação pode transformar o que parecia já definido, tudo ganha contornos mágicos. Ouso falar de magia aqui porque, para mim, magia é tudo que engloba um acontecimento misterioso, que podemos experimentar no corpo. E escutar, escrever, analisar são coisas mágicas porque são acontecimentos de corpo (embora tenham existência para além dele).
Como foi que você, jovem analista, foi de encontro ao seu corpo a partir das palavras? Como foi que sua forma de sofrer mudou por causa das outras possibilidades que se materializaram por palavras que nem mesmo têm matéria própria? Nosso ofício nos ensina a perceber aquilo que, embora sem materialidade, tem efeitos inegáveis. Uma palavra (ou um silêncio) podem intervir no sofrimento, que embora também não seja concreto, pesa como um para aquele que sente.
E é por havermos sofrido que nos convocamos (e/ou somos convocadas a) escutar aqueles que sofrem. E é por isso que essa escuta se torna possível: apenas quem sofre pode escutar o sofrimento de um outro.
É por termos tido a coragem de olhar pra essa dor que foi despertada, como um relógio que ressoa um despertador, que podemos desenvolver a delicadeza de acordar outros, sabendo que isso não significa salvar. Significa apenas oferecer algo, e isso já é muita coisa. Oferecer um espaço de operação.
Certa vez sonhei que via um enfermeiro operar a cabeça de uma paciente. A cena em si evocava um certo horror, um medo de olhar para aquele pedaço de carne exposto. Mas o enfermeiro fazia tudo com presença, outra palavra para delicadeza. Ele prestava atenção, e operava com cuidado. Doía menos pela anestesia (necessária para um procedimento doloroso). A anestesia era o amor. Não esqueçamos nunca que a psicanálise se opera pelo amor – e, porque não, com amor. O horror não precisa ser sem amor, aliás, o amor possibilita escutar o horror de outra maneira.
Querida jovem analista, que sua escuta seja presente, amorosa, delicada. Que você nunca deixe de se questionar e de se espantar com aquilo que testemunha (e também com o porquê da sua escolha por escutar o pior do outro – sabendo que também poderá, e alguns momentos, presenciar o melhor). Sabendo que é um privilégio estar na posição de operar a vulnerabilidade do outro. E que pinçamos, costuramos, extraímos e ecoamos palavras.
A beleza da escuta está em escutar com o corpo todo, sentindo o gosto e a textura de cada palavra, notando os vãos entre elas, os relevos e a topografia que os espaços produzem. Uma analista pode, todos os dias, ver novas paisagens. Sempre em formação. Que sua disponibilidade para isso nunca cesse, mas se mantenha em movimento para continuar existindo.
Anna Medeiros Furtado

Deixo aqui meu agradecimento à Ana Bernardes, que acreditou no meu desejo e me deu a possibilidade de participar desse projeto incrível, ao lado de tantas analistas que admiro e algumas com as quais estudei e ainda estudo!
Expressão utilizada pelo autor Luiz Fernando Veríssimo.
Expressão utilizada pela autora Laura Cohen.
Essa expressão do Juliano Garcia Pessanha está em seu livro “A recusa do não-lugar”. Recomendo fortemente!
Antropofagia é um conceito que representa a assimilação do outro — suas ideias, culturas ou valores — o canibalismo, aqui, de forma transformadora, não literal. A imagem do "comer o outro" é usada aqui como metáfora para um processo profundo de absorção, reinvenção e recriação da alteridade.
Que texto lindo, Anna! Escutar com o corpo, ter paciência, saber que escrever é o risco de se deparar com algo inesperado ❤️ to digerindo aqui.
E parabéns por essa publicação! Que mágico ver suas palavras voando em diversas plataformas ✨
Querida Anna... Sua sensibilidade tem me tocado de forma profunda!
Que prazer poder conhecê-la!
Parabéns pelo parto!!