Porque eu retirei minhas próteses de silicone (parte II)
Corpo novo, vida nova. Alívios de escutar e resgatar a mim mesma.
Nessa edição, continuaremos a navegar por essa jornada.
Pegue um café, um chá ou sua bebida favorita e senta que lá vem mais história.
O que me fez me direcionar pra essa decisão
O tempo que precede algo pode ser mais difícil do que a hora da coisa em si.
Os meses que envolveram o preparo (psíquico, antes de tudo) antes da cirurgia foram muito intensos. Em praticamente todas as sessões de análise eu tocava nessa pauta, as conversas com meus amigos eram constantemente atravessadas por essa questão e meus pensamentos estavam monotemáticos.
Apesar de estar feliz por esse passo, não foi nada fácil consumar essa decisão – e sentir o dia se aproximando. Sabia que seria uma despedida difícil, apesar de esperada (e desejada!).
Engraçado lembrar que, quando coloquei as próteses 10 anos atrás, eu praticamente não percebi o sentimento de medo... a euforia era tanta que ofuscou qualquer outra coisa (não que não houvesse com medo; havia! mas meu foco não estava aí). Já ao decidir tira-las, medo foi praticamente tudo que eu sentia!
Mas uma de.cisão é uma cisão com uma outra coisa – não apenas uma escolha, mas uma separação. Abrir mão. E isso dá medo. Vários.
Dois medos principais com os quais me deparei: o de morrer e o de odiar (o resultado).
Explico.
Morrer e odiar; viver e amar.
Bom, o medo de morrer parece mais óbvio, pois a maioria de nós o tem.
Mas nem tão óbvio assim, quando parei pra refletir, em análise, sobre o porquê de ele estar me tomando naquele momento. Para além do risco (também óbvio) de passar por uma cirurgia, percebi que a presença do medo de morrer refletia um grande desejo de viver.
Me emocionei, quando numa sessão, reconheci que estava, mais do que nunca, apaixonada pela vida. Por mim mesma. E tinha medo de perder isso.
Já o outro medo de perder era relativo à boa relação que alcancei com minha autoimagem – e que foi construída ao longo do tempo por muitas outras vias. Sabia que a autoestima não dependia só da minha imagem, pois me estimava para além dela.
Justamente por isso, me dispus a correr esse risco – o de mudar minha imagem em prol de como eu me sentia no meu corpo. Essa era minha prioridade. Pois ter as próteses nunca foi plenamente confortável; apesar de gostar de como elas aparentavam no meu corpo, por dentro eu sentia dores e incômodos profundos. Meu corpo já pedia há muito tempo pra ser salvo.
Quantos gritos nossos nós mesmos não escutamos e não atendemos?
Spoiler: eu não tive de fato nenhum problema com nenhum desses medos (rs). Pois continuo viva, e surpreendentemente, não foi nada difícil aprender a gostar do meu antigo-novo-corpo. Pelo contrário, foi estranhamente fácil, e posso dizer que hoje gosto ainda mais dele.
Meu corpo, do qual tomei posse novamente.
Eu me reconheci em mim mesma.
Nem mesmo as roupas foram um problema.
Nada foi um problema. Nada foi desencontro.
Foi tudo encontro.

A primeira inspiração…
Como eu introduzi previamente, já convivia com dores e desconfortos por toda essa década. Eu as sentia constantemente me incomodando. Minha respiração era restringida. Eu não conseguia me deitar de maneira confortável em certas posições (ou permanecer nelas por muito tempo). Na TPM, tudo ficava intensamente pior.
O próprio processo de recuperação da cirurgia de quando coloquei as próteses foi doloroso num nível praticamente insuportável. Colocar próteses abaixo do músculo é algo muito agressivo para o corpo, e inevitavelmente haverá dor; mas acredito que no meu caso foi ainda mais do que o esperado por conta da violência médica que sofri (quem leu a primeira parte desse relato sabe).
Então, passados alguns anos, eu comecei a cogitar tirar as próteses. Mas o custo de passar por isso (e não estou falando apenas de dinheiro – aliás, principalmente os outros custos que não o dinheiro) parecia não compensar. Ainda.
Então decidi conviver com isso por mais um tempo, adiando essa outra decisão.
Quantas coisas suportamos em nome da conservação de um status, de uma condição?
Uma colega, que tinha tirado suas próteses, foi uma grande motivadora nesse processo. Camila as tinha colocado bem depois de mim, e chegou a me procurar pra ter algumas orientações antes de passar pela cirurgia; mas rapidamente ela também sentiu enormes desconfortos, as mantendo apenas por um ano, e tomou logo a decisão de tira-las.
Ter a visto tomar a decisão corajosa de atravessar uma nova cirurgia para se livrar do que a estava fazendo sofrer me inspirou, pois era a primeira pessoa próxima a mim que havia feito um explante; e naquele momento fui eu que pude pedir orientações a ela. Depois, vieram as primeiras discussões na internet sobre o assunto, e então vi que não estava mesmo sozinha.
Nem toda decisão tem um dia decisivo que a marca, mas no meu caso teve.
Apesar de ter sido um longo processo, houve sim um momento que marcou definitivamente essa empreitada.
O que marcou a escuta desse grito do meu corpo foi quando, no Carnaval de 2024, passando um dia na casa de uns amigos, resolvemos comer um brigadeiro de m4conha. Sim. Sem tabus por aqui, tá?
Todas as vezes que usei algo que altera a consciência (incluindo aí o álcool), minha percepção de corpo ficou intensificada. Eu já tinha sentido esses incômodos amplificados outras vezes, mas dessa vez foi diferente. Eu me deitei num determinado momento e senti de forma sufocante as próteses ali, dentro do meu peito, esmagando minhas costelas. Sentia a borda delas no meu tórax, abaixo do meu músculo peitoral. Um peso gigantesco que me oprimia.
Era impossível ignorar a presença delas ali, e todo aquele desconforto ficou insuportável (como sempre havia sido, mas ali a urgência me tomou). Coloquei as mãos nos meus seios e senti um pânico ao reconhecer minha situação: seria complicado tira-las dali. Me senti prisioneira, porque não podia simplesmente arranca-las naquele momento. A impotência me esmagou mais um pouco.
A sensação de que estava insuportável abrigar aquelas próteses no meu corpo crescia a cada momento. E culminou ali… mas eu já carregava esse sentimento de não conseguir mais carrega-las há muito tempo.
Eu me senti desamparada. Com medo. Ah, o medo.
Correr atrás de todos os detalhes pra fazer aquilo acontecer parecia tão complicado feito um muro enorme, maior do que eu me via capaz de transpor. Já me senti assim outras vezes, todas em que eu precisei atravessar algum desafio realmente grande; mas eu só cresceria através deles.
O muro não diminui, nós é que crescemos à medida que escalamos, e daí ele parece menor em retrospecto.
Mas o auge ainda estava por vir...
Cansada de agonizar em todas aquelas sensações ruins que estavam mais do que nunca escancaradas, afogando naquele suco de sensibilidade onde era capaz de sentir cada dor acumulada no meu corpo, eu me levantei.
Fui ao banheiro, tirei a blusa, encarei meu corpo no espelho. E conversei com ele.
Sim, eu falei com meus seios. Parece cômico? Talvez seja. Mas o cômico também carrega sua seriedade, e também diz sua verdade.
Chorei, mas também ri. Me desesperei, mas também me aliviei.
Porque ali que a de.cisão se consumou. Eu assumi pra mim mesma o compromisso de seguir adiante com a resolução daquela situação. Eu me responsabilizei por cuidar de tudo. Por cuidar de mim. Por levar a sério aquele grito do meu corpo, e dar dignidade àquele pedido de socorro. Por escutar. E fazer o que fosse preciso.
Em busca de um profissional
Os primeiros passos parecem sempre difíceis, pois são como tentar fazer um recorte num campo muito aberto. Ou como tatear no escuro.
Parecem haver mil possibilidades, embora a gente ainda nem mesmo tenha encontrado uma que seja palpável.
Diante dessa névoa, eu me concentrei em dar apenas um passo.
Bom, quem me conhece sabe que eu sempre conto com uma ajudinha do universo para as coisas. E eu deleguei pra vida a responsabilidade de me auxiliar nessa. Afinal, eu estava fazendo minha parte, e contava com a vida para fazer a dela.
Joguei no Google (juro): “cirurgiã plástica”. De forma bem despretensiosa. Só pra ver se tinham consultórios aqui perto.
De cara achei a Dra. Júlia Melo.
Haviam muitas (muitas!) avaliações super generosas e sensíveis de pessoas que tinham se sentido acolhidas por ela – e satisfeitas com seus processos. Uma cirurgia, qualquer uma, mexe muito com muita coisa. Uma cirurgia plástica, então, toca na imagem, na estima, no inconsciente. Era importante ter alguém em que eu pudesse confiar.
Paralelo a isso, eu tinha salvo o contato de dois outros cirurgiões que foram recomendados numa página de explante no Instagram, e pretendia marcar consulta com eles. Mas como as consultas custavam, em média, 500-600 reais, eu ia marcar com um de cada vez (esperando ter a sorte de acertar logo e não ter que ficar perambulando por vários profissionais).
Mas tendo a sorte de encontrar a Dra. Júlia Melo, antes mesmo de marcar com eles, já solucionou um tanto do que me angustiava. E importante dizer que o fato de ter encontrado uma profissional que fosse mulher me deixou mais tranquila e confiante (outras mulheres entenderão).
Fiz minha pesquisa dessa vez. E marquei a consulta.
Na noite que antecedeu nosso encontro, eu sonhei que a imagem dela se mesclava com a Dra. Francis Paciornik, uma médica que é também analista junguiana e neurocientista e com quem estudei muito sobre os mistérios do inconsciente. Bom, quem me conhece também sabe que os sonhos são grandes ferramentas de orientação pra mim (pena que não são pra todo mundo, afinal, muitos perderam contato com essa herança que é um direito enquanto humano, mas isso é papo pra outra hora). Foi a confirmação que eu precisava.
E o esclarecimento de que seria uma cirurgia não só física, mas psíquica.
E sim, a consulta foi incrível. Muito melhor do que eu esperava. Me senti amparada e pronta pra seguir adiante com o processo. Marcamos a cirurgia pra dali a alguns meses, e segui trabalhando bastante em análise minhas questões.
Mas como a vida também é maior do que nossos planos, precisei adiar a cirurgia (que aconteceria em agosto) porque a proprietária do apartamento em que eu morava resolveu vende-lo. Bem no meio disso tudo!
Bateu um pouco de desespero, mas seria melhor assim do que se tivesse acontecido o contrário; imagina se eu estivesse recém-operada e precisasse realizar uma mudança...
Então lá fui eu subir outro muro, procurar apartamento (algo bem desafiador em BH) e fazer uma mudança com um prazo super apertado, simultaneamente vivendo todos esses processos internos. “Foram muitas emoções”, essa expressão nunca me contemplou tanto.
Aos poucos, tudo foi chegando no lugar e consegui fazer a cirurgia no mês seguinte, em setembro. Muito mais tranquila de já estar no meu novo lar (que, novamente, contei com uma ajudinha do universo pra encontrar, e não poderia ser melhor nesse momento).
O fim é um novo começo
Segui sentindo muito medo, que aliás parecia só aumentar à medida que a data da cirurgia se aproximava. Mas também segui falando disso com minha analista, minha médica, meus amigos e meu companheiro.
Falar é uma saída possível para elaborar algo do que nos toma, ao invés de apenas se permitir ser tomado e afogar nessas águas internas.

E como as sincronicidades nunca deixam de surpreender, no dia que antecedeu a cirurgia eu dei uma palestra (convidada para um evento relativo ao feminino, por uma amiga querida que também é psicóloga, a Larissa Barroso) sobre um conto que se chama “Os Sapatinhos Vermelhos”, que trata justamente da necessidade de nos livrarmos (não raro através de um corte brusco) daquilo que outrora escolhemos, mas viemos a descobrir que era uma maldição.
Sinto que isso também foi parte do meu preparo interno.

No dia seguinte, em resumo, correu tudo bem com na cirurgia; tirando o fato de ter acordado com uma dor intensa nas costas após a anestesia – e muita sensação de desamparo e angústia. Chorei um bocadinho, e fiquei em observação, mas algumas horas depois eu já estava em casa, melhor do que esperava para um pós cirúrgico tão recente.
O medo ainda insistia em me acompanhar, mas agora, ele dizia sobre o receio de ver o resultado pela primeira vez, quando tirasse o sutiã cirúrgico e fosse tomar banho... mas fui novamente surpreendida (parece que esse é o tom geral dessa aventura) por quão bom o resultado havia ficado… e olha que ainda era o primeiro dia após a retirada! Agora, 7 meses depois, mudou um pouco mais: a pele retraiu e parece que eu nunca nem tive próteses. Na verdade, gosto ainda mais dos meus seios hoje. Estão até mais bonitos do que eram antes do silicone.
Algo curioso é que eu até estranho quando vejo fotos antigas quando tinha “peitão”; é como se já não me reconhecesse mais com aquela aparência.
Minha confiança não diminuiu, pelo contrário, ela aumentou. Não só porque eu gostei visualmente do resultado, mas porque essa confiança surgiu de uma admiração por mim mesma. Pela minha coragem. Pela minha decisão.
Outra grande mudança, sobre a qual que eu lia em vários relatos de explante: como a respiração ficava mais livre. Eu sabia que as próteses restringiam a respiração – inclusive, minha médica me disse que eu havia perdido cerca de 30% da minha capacidade respiratória porque minhas costelas não podiam expandir, e nem o meu diafragma. Era como se eu estivesse sempre de espartilho (as próteses ficavam em baixo do músculo).
E assim que acordei da cirurgia, foi a primeira coisa que notei.
Eu estava respirando livremente.
Eu estava livre.
Eu podia agora deitar de bruços. Eu podia tocar minhas costelas sem sentir que elas estavam doentes. Eu podia habitar meu corpo sem sentir que havia um corpo estranho lá.
Transcender o medo, mas ir com ele
O medo está lá para tentar nos proteger diante das travessias difíceis; seus conteúdos refletem aquilo que nos desampara num nível mais radical. Mas em toda essa experiência também aprendi que o medo nem sempre reflete a realidade, e que em comparação à essas projeções temerosas, “a realidade é um alívio” (frase da Ana Suy). Foi tudo infinitamente mais fácil do que parecia.
O pós cirúrgico foi um momento de me nutrir e ser nutrida, me cuidar e ser cuidada, receber visitas e também ficar quietinha, dar risadas e comemorar o sucesso aquela empreitada. As próteses (que foram esterilizadas e entregues a mim depois da cirurgia) viraram um objeto de brincadeira entre meus amigos: uma lembrança de tempos difíceis, mas também de travessias transformadoras.
Elas seguiram comigo, mas agora fora do meu corpo.
Quero deixar um agradecimento à minha mãe e os meus amigos, que foram pontos de apoio imprescindíveis para que eu pudesse avançar sem vacilar – ou melhor, sem cair. Que me visitaram e estiveram comigo em presença.
À minha analista, que me escutou com atenção e sensibilidade, sem interferir no processo, respeitando o espaço que eu precisava para sentir (e desemaranhar os nós).
E por último, mas não menos importante, à Dra. Júlia Melo e toda sua equipe que me permitiu relaxar dentro do possível nesse processo. Que atravessaram, junto comigo, até o outro lado.

Me despeço.
Eu precisei das próteses por um tempo. Em alguma medida elas me fizeram bem, mas também me fizeram mal. Nunca foi plenamente confortável tê-las dentro de mim, mas tomar a decisão de me despedir delas também não foi fácil. Mas me ver sem elas foi mais fácil do que eu imaginava.
Eu tinha medo de morrer, literalmente. Isso não aconteceu; mas, de certa forma, eu morri simbolicamente, e continuei viva. Eu testemunhei meu próprio renascimento e agora pude narra-lo.
Obrigada por me ler até aqui e compartilhar dessa jornada comigo.
Anna Medeiros